quinta-feira, 1 de abril de 2010

Umaisdois


Um

Colocou o pé direito no chão morno de seu quarto de dormir. Enquanto seus olhos abriam-se vagarosamente ratificando a dor que é causada pela luz matinal nas retinas meio adormecidas, percebia o aroma cafeinado que vinha da cozinha.

Caminhou vagarosamente, após ter visto que as horas ainda eram precoces, até o banheiro, mal lavou seu corpo, onde posteriormente acomodou com certa preguiça as roupas e deambulou até a sala, onde sua mãe a esperava com suas pressas e preces tradicionais.

Tratou de engolir a massa que fora tocada por algumas outras pessoas antes de tocar sua boca, sorveu o líquido aromático que percebera ainda no banheiro e disse adeus a sua mãe, dando-lhe um beijo na cabeça.


Dois

Mal levantou as pálpebras naquela manhã, nem mesmo olhou para o relógio, pôs-se a correr. Rapidamente levantou-se, atropelou o livro que deixara cair no chão na noite anterior, quando lutava contra o sono, bateu os pés de ossos levemente tortos no assoalho, correndo. Talvez de si, talvez do tempo, talvez das caras amarradas que enfrentaria devido a seu atraso.

Quase queimou os lábios bem pintados de vermelho com o café quente obtido na troca de 5 reais em uma loja chamada Grão, que ficava na esquina de sua casa. Corria. Continuava correndo. Agora em direção a seu carro vermelho. Abriu a porta, entrou, sentou-se, olhou-se no espelho e repetiu a mesma frase que alegava todos os dias para o vidro refletor : “Você é linda!”


Três

Por que gostava das 8:30 da manhã, horário em que os carros lhe davam ideias e a brisa lhe acalentava a alma, andava até a agência em que trabalhava como redatora publicitária. Não sabia por que havia escolhido a profissão, mas criar títulos imaginativos e amarrar textos quaisquer que fossem, davam-lhe certo prazer, nada daquele peso de ser o objetivo da vida, era algo leve, fluido, com um quê de “tinha de ser” um tanto poético, como ela.

Por que morava a quatro quarteirões de seu trabalho, onde era executiva de importantes contas de publicidade, ia em seu veículo próprio, à velocidade que Deus disse, com uma hora de espaço entre aquele momento e o começo do expediente. Usava saltos que estragariam nas calçadas esburacadas, onde ainda dormiam crianças e velhos diferentes dela.

Chegava perto da esquina mais arborizada de seu caminho. Um sinal fechado, o outro aberto, apostou que os carros sob ordem do semáforo em magenta estavam enlouquecidos, como verdadeiros leões prestes a atacar. Avistou de longe um carro vermelho. Dentro dele uma moça jovem, aparentando uns trinta e dois anos, falava com o espelho. Ela viu que a moça reparou a demora do sinal, deixando sair de sua boca vermelhíssima de batom palavras de ódio, apressadas, abusadas, abusivas.

De dentro do carro gritava, estava aos berros, transloucada, olhava o relógio e com a boca vermelha proferia palavras de desgosto. Precisava sair daquele lugar. Precisava sair. Precisava. Correr, correr, assim, sem conjugar, para ficar mais livre e contiuar, ar, ar! Saiu do carro. Largou o veículo de qualquer jeito em um espaço qualquer, enlouquecendo o flanelinha de quem sentia nojo.

Com ouvidos preenchidos por música que considerava inteligente e o cérebro sucumbindo à proposta utópica da canção, observava a cena. Como em um video-clipe do fim dos anos 80, a cena era uma historinha imaginada, uma mulher correndo, os carros a rosnar, os semáforos de vida própria dirigiam o espetáculo. Sua alma tão amena, nada inocente, procurava editar a narrativa direcionando os olhos: close nos pés, abre pro asfalto, panorâmica do trânsito. E os olhos da mulher, ah, os olhos da mulher! Insanos, vermelhos, corriam mais que o correr.

Precisava passar, não observou no semáforo a nova direção. O sinal verde havia cortado a cena para quem caminhava, os protagonistas seriam, naquele momento, naquele espaço, os automóveis, os carros, os ônibus, as bicicletas, os que tinham rodas de borracha, não os que tinham extremidades humanas de osso e carne. Não viu, não observou, não tentou, não ficou, não hesitou, não parou, não olhou para ninguém. Correu. Na tentativa de furtar a cena para si, perdeu. A grande máquina obedeceu o diretor, com suas rodas e frente gigantescas finalizou o ato de rebeldia. Não era só mais a boca, mas a pele branca estava vermelha. Fora lançada e já não mais era protagonista, antagonista, coadjuvante. Neste mundo, já não era mais nada. Sem lugar, separada de seu relógio, descabidamente revirada, teria vergonha de estar exposta daquela forma tão humana. Isto é, se pudesse ter vergonha ou qualquer coisa, mas a partir daquele momento não poderia ter mais nada.

Assustou-se. Não gritou, levou as mãos à boca para conter o grito. A música continuava ecoando em seus ouvidos e já não era mais trilha para a cena. A cena havia findado. Continuou andando vagarosamente, apesar de ter apressado um pouco mais os passos. Aquele monte de gente, aquela aglomeração, aquelas pessoas unidas como se fossem lutar por algo em conjunto, “preparando-se para a batalha”, ela pensou. Passou ao lado, todo aquele vermelho, aquela vida espalhada, aquelas vidas ao redor. Olhou para o relógio. O semáforo lhe disse “vai!”. Faltavam 5 minutos para chegar à sua sala. Deixou toda aquela vida para trás. Não havia nada a fazer. Seguiu.

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